quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

LEMBREI ... EU SEI QUEM VOCÊ É.

Há anos eu não voltava ali. Estava feliz relembrando a infância, o ônibus passando por aquelas ruas tão conhecidas ... as casas continuavam as mesmas, as pessoas ... algumas tão familiar.
Paramos na Rodoviária. Enquanto esperava o embarque de alguns passageiros, olhava distraidamente o movimento pela janela do ônibus. Foi quando me deparei com aquele olhar, sério. Era impressão minha ou havia rancor naquele olhar. Quando nossos olhares se encontraram ele virou o rosto enraivecido e saiu mancando. Fiquei consternada. Pensei ter fixado meus olhos, sem querer, naqueles pés que caminhavam com dificuldade. Magoei-o sem querer. Sentí-me culpada.
Passei a vê-lo outras vezes na mesma rodoviária quando ali voltava. Ele sempre com aquele olhar estranho. Eu sempre evitando olhar para ele.
“Ele nem me conhece, porque será que me olha tão esquisito?”
Pouco tempo depois, voltando para a Festa da Cidade, surpresa, vi o rapaz sentado numa mesa com a família. Família aliás muito conhecida. “Hum ... quer dizer que a gente já se conhecia”, pensei. Tantos anos sem retornar àquele lugar era normal que antigas memórias me voltassem e estranhos sonhos me ocorressem. Sonhava com um menino, à cavalo, parado no alto de um morro, me olhando com rancor e ódio. Era assustador, parecia me esperar e eu sabia que não tinha como escapar dele. Passei a sonhar essa mesma cena todas as noites.
Sonho ... ? Não, não era um sonho e sim uma memória guardada no inconsciente. Aos poucos a coisa foi clareando e comecei a me lembrar. Havia sim um garoto, um pouco mais velho que eu, sempre à espreita, me vigiando, montado à cavalo, lá encima do morro no caminho da escola, pela manhã no horário das aulas. Não havia como fugir, qualquer caminho que eu tomasse, lá estava ele, a me perseguir, tentando me atropelar com o cavalo.
Como num quebra-cabeça as peças começaram a se encaixar. O garoto era amigo do meu irmão. Às vezes ele estava à espera, e meu irmão chegava antes de mim, então os dois saiam juntos rindo e conversando. O menino sempre à cavalo.
Porque ele me perseguia? Porque eu não falava com minha mãe ou com meus irmãos?
Esquisito, sempre que eu me perguntava isso, me vinha uma sensação de culpa. Eu fiz alguma coisa para aquele garoto. Por isso a raiva, a perseguição.
De tempos em tempos eu voltava a me lembrar desse episódio e ficava me perguntando: Por que eu não pedia socorro a minha família? Se meu irmão era tão amigo do menino, porque eu não falava com ele? E quem era esse garoto?
Com medo, eu nem saia de casa e não queria mais ir à escola. Pressentindo algo, minha mãe pedia a meu irmão que me acompanhasse. Quando eu estava acompanhada, o rapazinho apenas me olhava, com aquele olhar raivoso de quem dizia: “você vai ver ... ainda te pego!”.
Um dia para fugir dele tomei um outro caminho. Inesperadamente, ele me apareceu à galope, devia estar escondido à espreita, pois não percebi sua chegada e, surgindo do nada, jogou o cavalo encima de mim. Não queria me machucar, só assustar, pois quando me viu tropeçar e cair, com as patas do cavalo quase a me atropelar, com impressionante controle ele manejou a montaria e fugiu em disparada.
Nunca mais o vi. Não sei se ficou assustado pois poderia ter me machucado seriamente; o fato é que nunca mais o vi e tinha me esquecido completamente desse episódio.
Só agora, tantos anos passados, volto a vê-lo e me recordo, então, do real motivo de seu rancor por mim.
“Uma manhã ia entrando na escola, quando vi um menino à cavalo, descalço. Minha mãe vivia dizendo que era feio andar descalço, só andava descalço quem não tinha dinheiro para comprar sapatos. Por isso, quando eu o vi, não titubeei: – Hi! Não tem nem dinheiro pra comprar sapato”.
Seu problema não era falta de dinheiro, e sim um defeito congênito, que o impedia de calçar sapatos. Fato que deveria aborrecê-lo profundamente. Na época, não percebi o problema físico. Só agora, analisando os fatos, friamente, consegui identificá-lo como o autor desse episódio.
Um dia, contando essa história a meu filho, ele me disse que conhecia o rapaz em questão e, que o mesmo havia perguntado se ele era meu filho. Sabia até o meu nome.
       
Eu já o perdoei, e ele, será que me perdoou também?

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
*Autora: Marina Alice Rezende
  Ilustrações: Internet

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