quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

LEMBREI ... EU SEI QUEM VOCÊ É.

Há anos eu não voltava ali. Estava feliz relembrando a infância, o ônibus passando por aquelas ruas tão conhecidas ... as casas continuavam as mesmas, as pessoas ... algumas tão familiar.
Paramos na Rodoviária. Enquanto esperava o embarque de alguns passageiros, olhava distraidamente o movimento pela janela do ônibus. Foi quando me deparei com aquele olhar, sério. Era impressão minha ou havia rancor naquele olhar. Quando nossos olhares se encontraram ele virou o rosto enraivecido e saiu mancando. Fiquei consternada. Pensei ter fixado meus olhos, sem querer, naqueles pés que caminhavam com dificuldade. Magoei-o sem querer. Sentí-me culpada.
Passei a vê-lo outras vezes na mesma rodoviária quando ali voltava. Ele sempre com aquele olhar estranho. Eu sempre evitando olhar para ele.
“Ele nem me conhece, porque será que me olha tão esquisito?”
Pouco tempo depois, voltando para a Festa da Cidade, surpresa, vi o rapaz sentado numa mesa com a família. Família aliás muito conhecida. “Hum ... quer dizer que a gente já se conhecia”, pensei. Tantos anos sem retornar àquele lugar era normal que antigas memórias me voltassem e estranhos sonhos me ocorressem. Sonhava com um menino, à cavalo, parado no alto de um morro, me olhando com rancor e ódio. Era assustador, parecia me esperar e eu sabia que não tinha como escapar dele. Passei a sonhar essa mesma cena todas as noites.
Sonho ... ? Não, não era um sonho e sim uma memória guardada no inconsciente. Aos poucos a coisa foi clareando e comecei a me lembrar. Havia sim um garoto, um pouco mais velho que eu, sempre à espreita, me vigiando, montado à cavalo, lá encima do morro no caminho da escola, pela manhã no horário das aulas. Não havia como fugir, qualquer caminho que eu tomasse, lá estava ele, a me perseguir, tentando me atropelar com o cavalo.
Como num quebra-cabeça as peças começaram a se encaixar. O garoto era amigo do meu irmão. Às vezes ele estava à espera, e meu irmão chegava antes de mim, então os dois saiam juntos rindo e conversando. O menino sempre à cavalo.
Porque ele me perseguia? Porque eu não falava com minha mãe ou com meus irmãos?
Esquisito, sempre que eu me perguntava isso, me vinha uma sensação de culpa. Eu fiz alguma coisa para aquele garoto. Por isso a raiva, a perseguição.
De tempos em tempos eu voltava a me lembrar desse episódio e ficava me perguntando: Por que eu não pedia socorro a minha família? Se meu irmão era tão amigo do menino, porque eu não falava com ele? E quem era esse garoto?
Com medo, eu nem saia de casa e não queria mais ir à escola. Pressentindo algo, minha mãe pedia a meu irmão que me acompanhasse. Quando eu estava acompanhada, o rapazinho apenas me olhava, com aquele olhar raivoso de quem dizia: “você vai ver ... ainda te pego!”.
Um dia para fugir dele tomei um outro caminho. Inesperadamente, ele me apareceu à galope, devia estar escondido à espreita, pois não percebi sua chegada e, surgindo do nada, jogou o cavalo encima de mim. Não queria me machucar, só assustar, pois quando me viu tropeçar e cair, com as patas do cavalo quase a me atropelar, com impressionante controle ele manejou a montaria e fugiu em disparada.
Nunca mais o vi. Não sei se ficou assustado pois poderia ter me machucado seriamente; o fato é que nunca mais o vi e tinha me esquecido completamente desse episódio.
Só agora, tantos anos passados, volto a vê-lo e me recordo, então, do real motivo de seu rancor por mim.
“Uma manhã ia entrando na escola, quando vi um menino à cavalo, descalço. Minha mãe vivia dizendo que era feio andar descalço, só andava descalço quem não tinha dinheiro para comprar sapatos. Por isso, quando eu o vi, não titubeei: – Hi! Não tem nem dinheiro pra comprar sapato”.
Seu problema não era falta de dinheiro, e sim um defeito congênito, que o impedia de calçar sapatos. Fato que deveria aborrecê-lo profundamente. Na época, não percebi o problema físico. Só agora, analisando os fatos, friamente, consegui identificá-lo como o autor desse episódio.
Um dia, contando essa história a meu filho, ele me disse que conhecia o rapaz em questão e, que o mesmo havia perguntado se ele era meu filho. Sabia até o meu nome.
       
Eu já o perdoei, e ele, será que me perdoou também?

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
*Autora: Marina Alice Rezende
  Ilustrações: Internet

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

CRESCENDO JUNTOS

       Mal o bebê começava a sugar a chupeta amarrada na ponto da fralda, a gatinha, sorrateiramente, enfiava-se por debaixo das cobertas e começava a chupar a outra ponta da fralda. Aquilo já havia virado um hábito, acontecia praticamente todos os dias, nos horários os mais variadas. 

           Ninguém sabia de onde vinha aquela gatinha. A mãe do bebê odiava aquilo, pensava que o animal poderia transmitir alguma doença ao seu filhote, então, corria com a gatinha dali, agindo diferente do pai que adorava olhar o bebê e a gatinha sugando a chupeta e a ponta da fralda naquele barulhinho tsuc ... tsuc ... tsuc ... interminável. A gatinha parecia imitar o barulhinho do neném chupando a chupeta, ou era o contrário? A mãe desconfiava que o marido talvez tivesse alguma coisa a ver com o aparecimento da gatinha, mas ele jurava que não.
         Assim, ela acabou por aceitar essa situação, adotando o felino, não antes de higienizar a pobre gatinha que era obrigada a tomar pelo menos um banho por dia. 
       
         Os dois filhotes cresceram juntos. A gata era levada para todos os lados dentro da mochila do menino e eram parceiros em várias brincadeiras, o que deixava a mãe de cabelo em pé, principalmente, na hora do futebol, quando o felino era jogado como um bola, na rede, e ao pousar sobre ela, a gata pulava ao chão e numa corrida de dar inveja a qualquer atleta, se jogava no colo do menino e continuavam com a brincadeira até que o primeiro a se cansar pusesse fim a ela.
        Como a criança morava em frente à escola era comum a gatinha ser vista andando sobre o muro do colégio ou esperando pacientemente o término das aulas deitada no banco do pátio externo.
         
      Aos dezesseis anos o rapaz nem se iniciara ainda na vida adulta e, a gata, já matrona e gorducha, preferia ficar dormitando em sua almofada, raramente saindo com seu dono. Ele então passou a treinar o futebol, com o filhote nascido da última ninhada, sob o olhar atento da mamãe gata. Mas o filhote também agora entrando na vida adulta, só queria saber de correr atrás das gatinhas, não demonstrando o mínimo pendor para os esportes. Compreensivo, o jovem resolveu deixá-lo em paz, afinal ele também, agora, estava mais interessado em outro tipo de gatinhas, aquelas dos longos cabelos que balançavam ao vento em ritmo cadenciado.




* Autora: Marina Alice Rezende
      

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

UMA FAMÍLIA INUSITADA

       Jocélia amamentava seu filho que acabara de nascer. Era o seu décimo filho e, como os outros, tinha os mesmos olhos verdes do pai. Iria completar 38 anos na próxima semana. Seu caçula já estava com 3 anos e foi uma surpresa, quando descobriu que estava grávida outra vez. Mas era desejo de Deus e ela estava feliz por isso. Mulher religiosa, nunca punha em dúvida os desígnios de Deus. Pois não fora ele quem lhe dera aquela família maravilhosa? Ela era a “escolhida” tinha certeza disso.
       Tinha 23 anos quando fora trabalhar na fazenda do Padre Hanz Houf. Nem precisava de salário, bastava casa e comida. Afinal era sua obrigação servir a Deus.
       
        E os filhos foram chegando ...

José era como ela, pobre e honesto. Mulato forte, não enjeitava trabalho.
Assim, também ficara grato por ter sido convidado pelo Padre a trabalhar na Fazenda. Tinha uma admiração fervorosa por ele. Quando Jocélia estava de resguardo, ou às voltas com doenças das crianças, era ele quem preparava as refeições do Padre. Enquanto Jocélia botava as crianças para dormir, José e o Padre jogavam baralho, dama, e José estava até, sendo iniciado nas intricadas artes do xadrez. E, enquanto isso, iam conversando até altas horas da noite, sobre quão variados são os caminhos de Deus.

Eram uma verdadeira família, bem o sabiam.

Por isso, José achou normal, e atendeu ao pedido do Padre, registrando as crianças em seu nome. Tiveram um pequeno contratempo. Nada sério. José queria colocar no primogênito, o nome de seu pai – João Silva – uma pequena homenagem. Mas o Padre não concordou, insistia em João de Deus.
José acabou aceitando, afinal o Padre era representante de Deus aqui na terra.
E aí vieram: Luiza de Deus, Antônio de Deus, Carlos de Deus, José de Deus  ...

AH! Aquelas crianças eram suas vidas.

Felizes, nem percebiam os olhares maliciosos, enquanto ocupavam os primeiros lugares nos bancos da igreja, nas missas de domingo. 




*Autora: Marina Alice Rezende
   Ilustração: Internet

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A FORMATURA


     A cerimônia ia começar. Diminuiu-se a luminosidade e um facho de luz recaiu sobre a fila de formandos que se agrupavam à entrada do Teatro.
        A música alegre e em surdina acompanhava a chamada dos jovens que entravam assobiando, dançando e tremulando um penacho azul que traziam à mão.
          Em meio à luminosidade que piscava ao som da música, uma estrelinha se destacou. Tornando-se cada vez mais brilhante, saltitante, feliz, voava de um lado para o outro, alucinada, envolvendo os formandos, num efeito maravilhoso.
          
      Os formandos foram tomando seus lugares no fundo do palco iluminado. À frente, uma linda e florida mesa acolhia os mestres.
         A estrelinha saltitante dançava sobre os ombros dos jovens formandos, chamando a atenção de todos, não se sabia de onde vinha aquele facho de luz, que parecia transmitir a emoção e a inquietude alegre daqueles jovens. Hora ela tremulava sobre os cartazes engraçados, empunhados por eles, hora como que parabenizando, rodeava o formando que recebia seu diploma.
      
     Quando, uma determinada formanda, chegou ao microfone para agradecer aquele momento tão especiala estrelinha deslizou sobre a lágrima que teimava em rolar de seus olhos e, como num carinho, escorregou pelos seus lindos e longos cabelos.
       
         O término da cerimônia foi marcado pelo ritmo forte e compassado da música. Os “capelos” foram atirados ao alto, enquanto uma chuva prateada tomava conta do palco.

         Sobressaindo-se, novamente, aquela estrelinha agora maior e mais brilhante, num rastro luminoso, ia formando as seguintes palavras, só vista pela linda jovem dos longos cabelos:


Parabéns minha Menina.
Estou feliz e orgulhosa de você.
Vovó.”


*Autora: Marina Alice Rezende
  Ilustrações Internet


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

PARA VOCÊ

             Natal chegando...
             Senti falta de conversar com você.
         Nesses quase seis anos de ausência, tenho podido constatar do quanto você deixou e o quanto nos ensinou. Ao ver filho crescido, com honra, dignidade, caráter ... veja como valeu a pena! Lembro-me de suas lágrimas pensando não estar preparado frente tamanha responsabilidade que é formar alguém para a vida.
             Deu certo, viu?  Deve estar muito orgulhoso.
            Obrigada, por ter me entendido, por me fazer rir de você, por ter rido de mim, por ter me emburrado, por ter me perdoado, por ter me amado. E, principalmente, por ter me ensinado a tolerância, e de ver além das aparências.
          O amor é eterno ... as pessoas, em sua essência, são eternas, pois ao partirem deixam lembranças e saudades, nos corações dos que ficam, por toda a eternidade.
                 Obrigada, por ter me ensinado a compreensão da vida.
                 Ahh ... como sinto, não ter te falado tudo isso antes.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

APENAS UM RETRATO

Ninguém sabia de quem se tratava. Já havíamos perguntado aos mais antigos, e todos respondiam a mesma coisa. “Quando cheguei já estava aí”.
Era um retrato antigo, com a data 1894 quase apagada, representando uma moça, aproximadamente 25 anos, porte majestoso e lindos cabelos loiros presos por fitas.
Devia ser professora, pois se encontrava na galeria de fotos de antigos mestres e diretores da Escola. Seu tipo físico e o nome “Rosé Riviére”, indicavam que era provavelmente francesa. Mas por que ninguém a conhecia? Todos os outros eram ilustres e conhecidos cidadãos, com numerosos descendentes naquele lugarejo.
A curiosidade nos levou a pesquisar.
Encontramos na escola livros de registros da época e para nossa surpresa, a tinta estava borrada justamente no assentamento dos dados de Rosé Riviéri.
Não encontramos nada em antigos jornais locais. Partimos então para outras fontes. Após algum tempo, encontramos uma pequena indicação de uma pessoa com o nome Rosé Lefrére, que teria chegado ao Brasil em 1890. Continuando nossa pesquisa nos jornais da época, encontramos referência a um Monsieur Lefrére, que estando acompanhado da esposa Rosé Lefrére, teria sido ferido por tiros e morto ao dar entrada no hospital.
Encontramos outro registro datado de dois anos após este incidente. O jornal noticiava que “O casal Rosé e Louy Riviére será recebido com grande pompa no Hotel La Lune, em Copacabana”. Um grande hotel da época. Após isso, não encontramos mais nenhuma referência à Rosé.
Em meio a essa investigação, fomos procurados por um certo Sr. Mario Rios, que nos pediu que abandonássemos a pesquisa e, pedindo sigilo - pela memória de seus tataravós - nos contou a seguinte história.
Rosé Riviére, era sua tataravó.
Casada e infeliz, fugiu com seu amante Louy Riviéri para o Brasil.
Riviére era um grande e conhecido empresário, do ramo de jóias. Por isso foi fácil serem encontrados pelo marido traído - Lefrére.
Após a morte de Lefrére, morto por Riviére em legítima defesa, viveram algum tempo tranqüilamente, até que a notícia do evento no Hotel La Lune, chamasse a atenção de seus familiares franceses. Com medo de serem acusados pela morte de Lefrére, o casal fugiu novamente, escondendo-se naquele desconhecido e longínquo lugar. Mais tarde, Rosé aceitou o convite para dar aulas de francês, na única escola ali existente. Por isso seu retrato estava na Galeria dos Mestres.
Posteriormente, abrasileiraram seus nomes para Luís e Rosa Maria Rios. Compraram uma fazenda naquelas redondezas, onde a família cresceu e viveram até o final de seus dias.
Tempos depois, em visita à fazenda do Sr. Mario Rios, encontramos um outro lindo e majestoso retrato de Rosé Riviére, enfeitando a parede da sala do imponente casarão.¨











*Autora: Marina Alice Rezende
*Na foto a atriz Keira Knightley interpretando a Duquesa Georgiana de Devonshire.







domingo, 4 de dezembro de 2011

FAMÍLIA MATRIARCAL


Somos a força motriz
Dirigindo a caravana
Ao seu destino final.
Voz mansa,
Quase um sussurro.
Sorridentes,
Olhares de gata manhosa.
Não tem tormenta
Nem guerra,
Que nos faça esmorecer.
Se a vida chega
Ao termo,
Ou se renasce
De novo,
Cada momento
É vivido
Em plenitude total.
Cada semente da gente,
Cresce com força e vigor,
Da união nasce a força,
Que nunca nos deixa abater.




* Autora da poesia e desenho: Marina Alice Rezende

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O CAPATAZ

   
       ”Deixo em suas mãos o meu bem mais precioso. Minha mulher e meus filhos. Cuide deles como se estivesse cuidando de sua própria vida”. 
         Com essas palavras, Evaristo montou seu cavalo e saiu galopando em direção á cidadezinha próxima, onde  negociaria a produção leiteira. Não tinha dúvida de que suas ordens seriam seguidas à  risca por seu empregado de confiança. 
           Ao contrário do marido,  Marisa detestava aquele homem, dava-lhe medo. Sério, um olhar mau, nunca o vira dar um sorriso. 
          Quando o marido precisava se ausentar da fazenda, ela pedia-lhe que deixasse uma arma em casa, e que proibisse o tal homem de sequer se aproximar da casa. Evaristo cumpria os desejos da esposa e ria de suas desconfianças. Confiava cegamente em seu capataz. “Não posso deixá-la aqui sozinha, com as criança, preciso de alguém que imponha medo e respeito”. Ele dizia.
         Mas não era só Marisa que não gostava do capataz, Tonia, a cozinheira, tinha pavor do homem. Com medo, as duas mulheres tentaram manter dentro de casa um rapaz para fazer pequenos serviços e protegê-las quando o dono da casa estivesse fora. Mas o capataz proibiu o jovem de entrar na casa, que por medo, o atendeu prontamente, não aparecendo mais.
        Assim, a tensão foi aumentando, e como se não bastasse, Evaristo ligou avisando que ficaria na cidade dois dias resolvendo problemas, e que mandaria o irmão à fazenda para fazer companhia à família.
           Embora Evaristo tenha mandado recado para o irmão, esse recado não chegou a ele.
           Tonia, Marisa e as crianças passaram a noite sozinhas.
         Pela manhã, Marisa recebeu vários telefonemas de amigos e familiares, preocupados, pois havia rumores de que a policia estava rondando as fazendas da redondeza, atrás de uma pessoa em cuja descrição o capataz se encaixava perfeitamente. Assustada, Marisa ligou para o pai pedindo ajuda. Não queria ficar sozinha. Seu pai e um irmão veio ter com ela, já ciente de que o capataz matara a mulher e a policia vinha seguindo seu rastro por todas as fazendas onde ele estivera trabalhando. 
        Evaristo ligou dizendo que já soubera das noticias, estava antecipando a volta para casa. e ficou pesaroso pela esposa ter passado a noite se sentindo só e desamparada.
             À tarde, a policia chegou. Vários homens à cavalo, revistaram tudo. Não encontraram nada. O capataz já estava longe.
            Na noite do dia seguinte, Evaristo chegou de carro. Marisa estranhou, pois Evaristo havia saído à cavalo, como sempre fazia quando saia sozinho. Deixava o carro em casa para ser usado em caso de alguma emergência com as crianças. Ele não ia antecipar a viajem? Porque só chegou agora?
           O carro estava emporcalhado, observou ela, exasperada.
        Conhecia bem o marido, não queria acreditar que ele tivesse feito o que ela estava pensando. Mas ele fez. Ela sabia. Ficou fula de raiva. Trancou-se no quarto, não queria brigar com ele na frente do pai e das crianças.
         Ele foi atrás dela e tentou abraçá-la, ela se desvencilhou dizendo que ele não se atrevesse a tocá-la. Como ele podia ter feito isso? Um assassino! Como você pôde ajudá-lo a fugir?
       Evaristo disse: - Sei que você não vai entender. Fiz o que eu achei que deveria fazer. Levei-o para longe daqui, dei-lhe dinheiro e mandei-o sumir. Conversamos muito. Não acho certo o que ele fez, mas não estou aqui para julgar ninguém. Sei que ele a assustava, mas eu tinha total confiança na lealdade dele. Respeito mútuo. Foi isso que me levou a ajudá-lo.
       Marisa continuou emburrada por algum tempo. Amava o marido. Ele tinha princípios e agia conforme esses princípios, mesmo que ela os achasse meio distorcidos às vezes.
           

          *Autora conto e desenhos: Marina Alice Rezende

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O CARROSSEL



   Lulu já estava acostumada, mal começava a escurecer e aquela claridade imensa tomava conta de tudo. A luz dourada dançando de lá pra cá, banhava o pátio e devagarinho ia subindo até cobrir todo o morro.       
Seu  pai então saia de casa, subia o morro e ficava lá por várias horas. 
           
          Lulu, muito curiosa, sempre perguntava ao pai aonde ia. Ele                                     respondia: “Vou dar uma volta”.
Um dia, escondida, resolveu seguir o pai.
Subindo ... subindo ... ia acompanhando seu pai, de longe, sem que ele a visse. Estava cansada. Achava já ter passado por aquela pedra parecendo um cachorro, um monte de vezes. Com os pés doendo, resolveu sentar para descansar e ... dormiu. Quando acordou estava no colo de seu pai, indo em direção ao topo do morro.
-Bonito, né? , disse o pai. Querendo me enganar? Eu estava lhe preparando uma surpresa. Vamos lá, disse então com uma beijoca na face da menina.
Continuaram a subir o morro. Chegando lá, Lulu ficou surpresa. Um enorme e lindo carrossel, mais de vinte bichinhos, cavalinhos, carneirinhos e renas,  rodopiavam. Em cada um, havia um amiguinho, brincando nos bichinhos. Desconhecidos ainda, Lulu notou que eles eram coloridos. Grandes olhos azuis, anteninhas amarelas, corpo vermelho. Outro de olhos vermelhos, anteninhas brancas e corpo verde. O que mais ela gostou foi o que estava no cavalinho ao lado do dela, todo dourado, os olhos mudavam de cor a cada piscada.
Ela amou. Agora, toda tarde ela subia para brincar com os  novos amiguinhos.



  *Autora: Marina Alice Rezende
    Ilustração: Internet

domingo, 27 de novembro de 2011

UM CONTO DE NATAL


O URSINHO      

          Enorme, azul, seus olhos de vidro preto brilhavam. O ursinho parecia estar sorrindo. Lily também sorriu para ele, achando que o ursinho queria brincar com ela. Botou a língua de fora, o ursinho repetiu o gesto. Agora ela tinha certeza. O ursinho queria brincar com ela.
          - Mamãe, o urso quer ser meu amigo. Ele está rindo para mim.
          - Sorria para ele também, disse a mãe.
          - Compra para mim, mãe ?
          - Outro dia ...
Conformada, ela saiu da loja acompanhando a mãe, com os olhos marejados de lágrimas, olhando triste para o ursinho.
Aquela noite o Papai Noel ia chegar.
Já era Natal.
Lá fora chovia muito.
Lily dormiu e sonhou. Papai Noel passava de trenó no jardim perto de seu quarto, jogou um grande pacote pela sua janela, que caiu em cima da cama. De dentro do pacote saltou o ursinho azul. Mal aterrizou nos lençóis ele já brincava de pula-pula, dava cambalhotas, rolava por cima do travesseiro, caía no chão e saltava de novo para a cama. Fez tanta estrepulia, que escorregou e bateu com o queixo no pinico que vovó colocou embaixo da cama. Machucando-se, limpou o sangue na camisolinha de Lily. Deitou-se ao lado dela e cansado, dormiu.
Que surpresa a de Lily, quando acordou de manhã, viu seu enorme amiguinho dormindo a seu lado. Cuidadosamente, limpou com um algodão umedecido um restinho de sangue no queixo do ursinho. Abraçando-o dormiu mais um pouquinho.
Papai Noel é mesmo muito legal!




* Autora: Marina Alice Rezende
       Ilustração: Internet

THALYA

Inspirado na estradinha de terra
 que leva à Angustura/MG.

      Thalya era uma linda mulher.  Linda e esquisita.  Ninguém sabia nada sobre ela, quem era, de onde vinha e o que fizera até então. Simplesmente aparecera. 
Devia ter sangue nômade nas veias, pois de quando em quando, sumia. Diziam que em certas noites ela saia à pé pela estradinha de terra que leva à auto-estrada. Lá, pegava carona e sumia por meses.


Lugar pequeno, povo curioso – Ela apenas sorria, escorregadia, respondendo às perguntas com outra que não tinha nada a ver. Simpática, mas arredia e de pouca prosa, chamava a atenção por sua beleza e seu ar meio “desligado”. Ás vezes, saía descalça, vestido florido arrastando pelo chão, e pequenas flores enfiadas, como brincos, nos buraquinhos das orelhas. Dizia que precisava sentir o contato com a natureza. Pisava descalça a terra e roçava-se na vegetação o que lhe causava pequenos arranhões fixando o cheiro de mato na pele. Sempre cheirosa, gostava do perfume das flores.
Em noites de lua cheia, era vista dançando em volta das árvores, com fina camisola, transpassada pela luz do luar, dando-lhe um aspecto fantasmagórico.
Uns achavam-na louca, outros, que fazia “tipo”.
Hoje, apenas um retrato antigo no mural da igreja, lembrando um evento qualquer em que participara, antes de sumir para sempre na estradinha de terra que leva à auto-estrada.


*Autora do conto e desenho: Marina Alice Rezende

MINHA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA AMOROSA

           Zefinha, mulata linda e fogosa, resolvida nas questões do amor, foi contratada por meus avós para me cuidar durante as férias. Deu-me do jeito dela as primeiras lições de amor.
        “Namoro não é coisa de criança”.
        "Pare de me olhar pelo buraco da janela”.
        Ela namorava na passagem entre a cozinha e o quintal – um lugar escondidinho, que logo descobri e ficava espreitando pelas frestas da janela. Não adiantava ela colocar um  pano escondendo os buraquinhos, que eu o tirava e depois recolocava no lugar. Dali só dava para ver os bumbuns descendo e subindo num balé sinuoso. Eu não entendia os suspiros e gemidos.
        - A gente se belisca e se morde, ela me explicava.
        - Eu não quero que ele te belisque e te machuque.
        - Mas eu belisco ele também, ela respondia rindo.
        Logo, percebi que haviam bumbuns brancos, marrons, negros e de todas as formas.
        Comecei então a desenhá-los e colocar os nomes correspondentes: Zé, Tião, Jão ...
        Foi assim que ela descobriu que eu a espiava.
        Um dia vi uma nádega magra, branca, esquálica – eu a reconheci, pois ficava escondida atrás da cortina quando o Zé da farmácia vinha dar injeção. Fiquei triste... achei que aquilo não era direito ... mas meu carinho por Eles era maior que minha decepção ... Esqueci.
        Havia um que ela não levava para o cantinho. Ficávamos conversando no portão os três, ele era muito divertido e sempre me trazia balas. Quando perguntei porque ela não o beliscava, ela me disse que ele era para casar. E me passou uma grande lição: 
        - Quando você descobrir o homem certo para casar, não o belisque, seja firme.
        - Como vou saber que ele é o homem certo?
        - Quando chegar a hora você vai saber.
        Sábia Zefinha!!!
        Uma manhã fomos com meus avós à missa de domingo. Já vinha reparando no menino da campainha – vestido de vermelho - que ajudava o padre. Pensei estar apaixonada. Não resisti quando ele passou a meu lado balançando aquela campainha num lindo toque de amor, e então, lhe sapequei um beliscão no traseiro.
        Ele me deu um empurrão tão forte que cai sentada no colo de minha avó, que zangada, me deu um vigoroso tapa na mão. Zefinha compreensiva, escondia o riso e balançava a cabeça balbuciando: 
        - Assim não ... ôôôôhh ... assim não.
        Mas foi assim que terminou a minha primeira experiência amorosa.





* Autora: Marina Alice Rezende
   Ilustração: Internet.

sábado, 26 de novembro de 2011

AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ


       Carlos olhava desanimado para a pilha de processos em sua mesa da sala de jantar. Acostumara-se a analisá-los de madrugada varando noites insones. 
          Viúvo recentemente, transitava entre raiva, melancolia e tristeza.
            Era tudo tão injusto.
          Agora ... era só o passar do tempo.
          E o tempo foi passando: dias ... semanas ... meses ... anos ...
          Dois anos. De repente se deu conta de que já se passaram dois anos desde o falecimento de sua mulher. Apanhou do chão a foto da esposa que escapulira de sua carteira. Tirada há pouco mais de quatro anos, quando se conheceram. Tão linda! 
          Continuava a pensar nela constantemente, mas a dor amenizara.
          Era comum sonhar com a esposa, mas nessa noite o sonho teve um significado diferente. Aceitação.
       Acordou com os raios do sol transpassando a vidraça. Pela primeira vez em dois anos tomou consciência do amanhecer sem aquela sensação de dor e solidão.
          Sentiu que já estava na hora de voltar a uma vida normal, mais feliz.
          Lembrou-se da vida despreocupada e alegre que um dia já vivera. Recordou-se de coisas que por algum motivo precisou deixar de lado: o futebol, o violão ... ah !!! já ia se esquecendo – a banda de forró. Riu baixinho ... nem se lembrava mais disso. Continuou rindo consigo mesmo ... há quanto tempo não se sentia assim.
         Por onde andariam Léo, Juca e Russo? Colegas de faculdade, formaram uma banda de forró. Se divertiram muito e até ganharam algum dinheiro com a banda, que acabou junto com o curso da Faculdade. Encontraram-se algumas vezes depois disso, mas cada um tomou rumo diferente e há anos não se viam.
         Carlos sentiu saudade dos rapazes. Passaram tantas coisas juntos. Armaram tantas confusões, se protegeram e se safaram juntos dessas confusões. Tempo bom. Iria procurá-los, pensou.
         Léo tinha uma irmã, Ana, com quem Carlos saiu algumas vezes, antes de conhecer a futura esposa. Se, para Carlos, Ana foi apenas uma amiga, ela, ao contrário, se apaixonou perdidamente por ele e sofreu muito quando soube de seu casamento. 
          Carlos, na época, percebeu a tristeza de Ana, pediu desculpas por não tê-la avisado antes, sobre o casamento, mas tudo aconteceu tão rápido. Não teve intenção de magoá-la.  
          Não se viram mais.
          Carlos deduziu que Ana, ao contrário do irmão, continuava morando na mesma cidade, onde trabalhava em uma grande empresa de pesquisa petrolífera. Foi fácil achá-la.
          Através de Ana conseguiu o email e telefone de Léo e assim os quatro amigos voltaram a se reunir periodicamente com futebol, churrasco e forró.
          Muito tempo sozinho, Carlos voltou a assediar Ana que se recusava a um encontro. Conversavam por email ou celular. Sempre gentil, punha-o a par de todos os acontecimentos que envolviam os amigos. Todos moravam em cidades próximas e se viam com frequência, ela disse.
          Apesar de falar muito sobre o irmão e os amigos, ela era sucinta e quase não falava de si mesma.  Carlos insistia perguntando se ela havia se casado, se tinha alguém.
           - Nada importante, ela respondia.
           Carlos não entendia, e um dia perguntou ao amigo, irmão da moça:
          - Como uma mulher tão linda como sua irmã, Léo, pode ainda estar sozinha?       
           – Talvez ela tenha se apaixonado e nunca conseguiu esquecer essa paixão, respondeu Léo malicioso. 
           Carlos entendeu. A indireta era para ele.
          - Não estou com essa “bola toda” não, Léo.
          - Quem sabe? Sorriu misterioso. Venha me fazer uma visita domingo á tarde.         
          No domingo, uma hora da tarde, lá estava ele estacionando seu carro em frente à varanda da casa de Léo. Havia muitas crianças no pátio enfeitado com bolas coloridas, ao lado da casa. Um enorme bolo pousava sobre a mesa no centro do pátio. Percebeu que tinha sido convidado para uma festa infantil. Ficou aborrecido consigo mesmo por não ter se informado melhor, poderia ter trazido um presente.
          Trancou a porta do carro e ia se virando para subir a escada da varanda, quando percebeu Ana vindo em sua direção. trazendo uma criança pela mão. O menino correu para ele sorrindo, com os bracinhos abertos, feliz da vida!  "É minha festa ... minha festa ...mamãe disse que seu nome é igual ao meu... Carlinhos. Confiante, o menino puxava-o pelas mãos levando-o em direção ao pátio colorido pelos enfeites que tremulavam ao vento.
          Surpreso, Carlos olhava o menino ... tão familiar .... sentiu como se estivesse se olhando no espelho há muitos anos atrás. Os mesmos cabelos claros, encaracolados e rebeldes, que insistiam em cair-lhe sobre a testa ... os olhos, claros e transparentes como o mel, o mesmo sorriso fazendo covinhas e ... aquelas pintinhas nas bochechas que ele tão bem conhecia, pois, assim que as percebera, por várias vezes ficou de bochechas vermelhas de tanta esfregar, tentando limpá-las pensando ser sujeirinhas.
          Meu Deus !!!! Foi a única coisa que conseguiu balbuciar.
          Seus olhos encontraram os de Ana que o fitava séria.
          Ana conteve um soluço, quando os braços de Carlos a envolveram, e ele disse baixinho: perdoe-me.
         Abaixando-se, Carlos pegou o menino no colo, e os três subiram juntos a escada em direção ao    pátio enfeitado.






* Autora: Marina Alice Rezende
   Ilustrações: Internet.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

TRAJETÓRIAS DE VIDA


Marina Rezende com um dos netos.

Há trajetórias de vida
Que vêm de encontro à nossa.
Chocam-se. Interpenetram-se.
Geram a felicidade.
Interagem.
E seguem juntas
Por toda a eternidade.

Há aquelas
Que, de repente,
Da nossa se aproximam.
Às vezes nos tangenciam
Mas logo se distanciam,
Tomam rumos divergentes.

Mas, a maioria delas
Correm em linhas paralelas
E com os nossos destinos
Não se encontram jamais,
Embora num mesmo barco
Viajemos todos juntos
Pela face de um planeta
Onde somos peregrinos.

Marina Rezende
Angustura, 07/06/2004














Marina Rezende,
Assim Como o Vinho,  2004.